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RESUMO DO LIVRO EM BUSCA DAS PENAS PERDIDAS

RESUMO

EM BUSCA DAS PENAS PERDIDAS

INTRODUÇÃO

Eugenio Raul Zaffaroni, 51 anos é professor titular da universidade nacional de Buenos Aires, diretor do instituto latino americano das nações unidas para prevenção do crime e tratamento do delinqüente e autor consagrado internacionalmente com diversas obras de larga circulação nos meios jurídicos, políticos e universitário da América latina. Em Busca das Penas Perdidas, seu ultimo livro, é o mais criativo trabalho de Zaffaroni segundo Nelo Batista. Nele se apresenta uma visão abrangente da crise social e institucional que atualmente se desenrola na América latina e que toma a forma de um processo de deslegitimação do sistema penal na região. O livro oferece uma resenha critica de diversas orientações teóricas que abre falência nessa crise de legitimidade e uma proposta de reordenação do direito penal que busque uma saída para essa dolorosa e permanente realidade jurídica social. Zaffaroni habilita compreender menos idealiticamente a função do sistema penal, para isto chegou a se afastar juntamente com outros professores da universidade chamado para um esforço de transformação, cooperando assim para que os juristas brasileiros, criminologos, cientistas sociais tivessem acesso ao mais criativo trabalho de Raul Zaffaroni.

I - As “Peines Perdues”

Iniciamos primeiramente com a constatação de uma situação critica no sentido mais ou menos análogo de uma situação que podemos dizer “espiritual” e refere-se a um conjunto de aspectos intelectuais e afetivos onde a perda de segurança é o fato mais preocupante. Esta situação critica não se pode tomar com causa como alguns imaginam onde se nega sua origem. Porém na sociedade a medida em que as coisas vão se tornando insustentáveis inicia-se uma evasão mediante a mecanismos negadores que insistem em conservar uma segurança embora os mesmo reconheçam que ela tem alguns problemas, sendo que estes costumam ser deixados de lado, através de uma delimitação discursiva arbitrária que evita confrontar a crise.

Mas estes mecanismos que negam não podem superar sua essência, afinal é difícil ocultar essa situação critica que se manifesta em uma progressiva “perda” das “penas”, isto é, as penas como castigos, torturas sem sentido.

Hoje se tornou comum a descrição de operacionalidade real dos sistemas penais e palavras que nada tem a ver com a real forma pela qual discursos jurídico-penais imaginam que atuem. Baseia-se então em uma realidade que não existe e os órgãos que deveriam levar mais corretamente essa programação atua de forma totalmente diferente.

Toda esta contradição requer algumas demonstrações urgentes em alguns paises centrais, porém na América Latina esta observação é apenas superficial. “A dor e a morte em nossos sistemas penais estão tão perdidas que o discurso jurídico-penal não pode ocultar seu desbaratamento valendo-se de seu antiquado arsenal de racionalizações reiterativas: achamos em verdade, frente a um discurso que se desarma ao mais leve toque com a realidade”.(p.12)

Enquanto o discurso jurídico-penal se contém cada vez menos, afinal já esgotaram-se todo seu arsenal de ficções, órgãos do sistema penal tentam de qualquer maneira através de seu poder controlar um marco social que é a morte em massa.

O sistema penal na maioria dos paises da região opera em um nível tão alto de violência que acabam causando mais mortes do que a totalidade de homicídios dolosos entre desconhecidos praticados por particulares, mas por outro lado relacionando-se as suas omissões concordamos que o sistema penal mostra-se incapaz de conter os abortos, homicídios no transito entre outros que são causa de morte mas não depende do sistema penal para que sejam evitados. Já neste sistema notamos então que as “penas perdidas” não requerem uma demonstração apurada.

Notamos então que o discurso jurídico-penal é falso, porém se atribuirmos sua permanência a má fé ou a formação autoritária seria muito simples e apenas se somaria a uma outra falsidade. O discurso jurídico-penal falso não é nem um produto de má fé por simples conveniente que seja e também um resultado da elaboração de algum gênio maligno, mas se mantém por não poder ser substituído ou outro discurso em razão de se defender direitos de algumas pessoas. Sempre se soube que todo esse discurso latino-americano era falso, afinal não é mais possível sair desse impasse em dizer o que é certo ou o que é errado em todo esse sistema penal, ou seja, apresentar soluções ou apontar defeitos seria mais fácil ao ter que mudar radicalmente todo o sistema penal.

“Hoje temos consciência de que a realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, e que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício do poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por constituírem marcas de essência, não podem ser eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais”.

II – Legalidade e Legitimidade

1. A utópica legitimidade do sistema penal. O sistema penal é uma complexa manifestação do poder social, sendo que este poder não é estático, mas sim algo que exerce – um exercício – logo o sistema penal mostra-se um exercício de poder planejado racionalmente, uma vez que é legitimo, ou seja, possui como característica outorgada por sua racionalidade.

A construção teórica que explica este sistema é o discurso jurídico-social, caso este discurso fosse racional o sistema penal atuaria conforme a realidade e o sistema penal seria legitimo.

Zaffaroni não acredita que a coerência interna do discurso jurídico-penal esgota-se em sua não contradição ou complexidade lógica “ ao contrário, requer também uma fundamentação antropológica básica com a qual deve permanecer em relação de não-contradição, uma vez que ,se o direito serve ao homem – e não ao contrário – a planificação do exercício de poder do sistema penal deve pressupor esta antropologia filosófica básica ou ontológica regional do homem.(p.16-17)”, ou seja, uma vez que o direito serve ao homem este pode manipula-lo como melhor lhe convier, e quem estiver no poder sempre será beneficiado.

Devemos entender que a este respeito também temos que ter muito cuidado pois tal afirmação pode trazer várias interpretações e sobre isto Zaffaroni deixa apenas a dúvida suspensa no ar... “no momento atual, esta afirmação no plano jurídico não implica uma remissão livre ao pântano da metafísica e do opinativo, embora subsista um enorme campo aberto à discussão. Acima deste âmbito discutível, é inegável que existe uma positivação jurídica mínima dessa antropologia, materializada nos mais importantes documentos produzidos pela comunidade jurídica internacional em matéria de direitos humanos. (p.17)”.

Temos que entender esta ontologia regional do homem como sua consideração como pessoa, consagrando positivamente esta atitude. Pessoa é qualidade que provém da capacidade de autodeterminar-se em conformidade com um sentido – Pessoa é ator – o protagonista central da tragédia que decide sobre o “bem” e o “mal”. O que se pode afirmar é que, a coerência interna do discurso jurídico-penal é questionada de forma contundente, por uma fundamentação antropológica, pois se evidencia a negação da coerência de tal discurso jurídico, quando se esgrimem os argumentos tais como: “assim diz a lei”, “a faz por que o legislador o quer”, etc (p.17) fazendo constatar que tais expressões produzem prova de ausência total de construção racional, mandato de legitimidade, para o gozo e exercício de poder por parte do sistema penal. Porém, a negociação da construção de coerência do discurso jurídico-penal voltada para uma racionalidade, não pode esgotar-se em si mesmo. Ainda que tenha uma fundamentação antropológica, o esgotamento de sua racionalidade deve estar numa esfera externa, por constatar-se uma impossível realização social de seu programa.

Devemos lembrar que “o discurso jurídico-penal é elaborado sob um texto legal explicitando, mediante os enunciados da “dogmática”, a justificativa e o alcance de uma planificação na forma do “dever ser”, ou seja, como um “ser” que “não é” mas que “deve ser” , ou, o que é o mesmo, como, um ser “que ainda não é”. Para que este discurso seja socialmente verdadeiro, são requeridos dois níveis de “verdade social”.(p.18).

a)Um abstrato, valorizando em função da experiência social, onde a obtenção dos fins justificam os meios;
b)Outro concreto, onde os grupos sociais que integram o sistema penal operam, sobre a realidade de acordo com o discurso jurídico-social.

O discurso jurídico-penal não satisfaz estes dois níveis, pois é socialmente falso, uma vez que desvirtua base de um ser que ainda não é para converter-se em um ser que nunca será, ou seja, engana, ilude ou alucina. “O discurso jurídico-penal não pode desentender-se do “ser” e refugiar-se ou isolar-se no “dever ser” por que para que esse “dever ser” seja um “ser que ainda não é” deve considerar a vir-a-ser possível do ser, pois do contrário, convertera em um ser que jamais será, isto é, num embuste. Portanto, o discurso jurídico-penal socialmente falso também é perverso: torce-se e retorce-se, tornando alucinado um exercício de poder que oculta ou perturba a percepção do verdadeiro exercício de poder.”(p.19)

Na América latina é absolutamente insustentável a racionalidade do discurso jurídico-penal, uma vez que não são cumpridos nenhum dos requisitos de legitimidade. Esta quebra de racionalidade arrasta consigo a pretensão de legitimidade do exercício de poder dos órgãos de nossos sistemas penais. Sendo incontestável que a racionalidade em tal discurso tradicional e a conseqüente legitimidade de tal sistema tornaram-se “utopias” e “atemporais” não se realizando jamais.

2. A legitimidade não pode ser suprida pela legalidade. “Legalidade” – refere-se à produção de normas mediante a processos previamente fixados tornando-se uma palavra equivoca.

As doutrinas que se referem somente à legalidade formal permanecem como se não possuíssem fundamentação, requerendo um principio de apoio no próprio processo de produção normativa, ora no “soberano”, ora na “norma fundamental”, busca que se torna em vão, pois as teorias da legalidade formal não podem explicar a legitimação do poder por meio de seu exercício puro.

Atualmente, principalmente na América Latina, a insuficiência legitimadora da legalidade formal é muito clara, por não existir, nos discursos jurídico-penais, nenhuma tentativa de legitimar o sistema, sendo este construído de forma que exclua tudo que não seja completamente lógico, tal discurso acaba por desqualificar, o sistema penal, fazendo com que a sociedade acredite que o mesmo trata somente de problemas banais. Porém, é importante lembrar que embora mal acabador o discurso jurídico-penal pretende suprir a legitimidade o sistema penal com a legalidade do mesmo, realizando um emprego parcial e incoerente deste tipo de tentativa, fugindo assim de nossa realidade.

3. O sistema penal não atua de acordo com a legalidade. A operacionalidade do sistema penal seria “legal” se os órgãos prisionais agissem de acordo com as normas expressas no discurso jurídico-penal, desta forma o exercício do poder apresentaria caráter de “legalidade”.

Porém nossa realidade é muito diferente do que foi colocado anteriormente, uma vez que nem se quer a nível prévio o sistema penal é “legal”. O discurso jurídico-penal retira desta palavra fundamentalmente dois princípios. Legalidade penal o qual equivale exige que o exercício do poder punitivo do sistema penal aconteça dentro dos limites previamente estabelecidos para a punibilidade e o principio de legalidade processual, o qual exige que os órgãos do sistema penal exerçam seu poder pra tentar criminalizar todos os autores de ações criminosas e que o façam de acordo com certas pautas detalhadamente explicitas. Isto mostra que o sistema penal dele sempre exercer seu poder.

Logo, uma leitura profunda das leis penais mostra que as mesmas renunciam a legalidade e o saber penal parece não perceber tal fato, um exemplo claro são os “injustos graves” que constituem, menores infratores, internos de manicômios, ou asilos, etc. Tratando estes indivíduos de maneira diferenciada dos cidadãos, apesar de institucionaliza-los, aprisiona-los, enfim estigmatizar, através das leis, sua existência.

Nota-se que o principio do sistema penal através do seu discurso jurídico-penal, efetua a exclusão e uma série de requisitos do poder de legalidade. “O exercício de poder de seqüestro e estigmatização que, sob pretexto de identificação, controle migratório, contravenções, etc, fica a cargo dos órgãos executivos, sem intervenção efetiva dos órgãos judiciais. A lei permite, deste modo, enormes esferas de inspeção, controle, buscas irregulares, etc, que se exercem cotidiana e amplamente, à margem de qualquer “legalidade” punitiva contemplada no discurso jurídico-penal.”

Diante de tal realidade constata-se que o poder repressor exercido pelos órgãos judiciais do sistema penal não é o poder repressor punitivo, mas sim, o sistema penal utiliza-se de espécies de controle social extensivo, de forma reiterada, mais procedente, cotidiana, de manutenção periódica na vida social.

Tal controle tende a ser igual ao de um quartel, fazendo parte de um exercício de poder que interioriza esta disciplina, atuando de maneira inconsciente, submetendo a sociedade a uma vigilância interiorizada desta forma de centro social é fundamental o papel dos meios de comunicação de massa, atraindo desde cedo na vida das pessoas, assim como as escolas, que vão incluindo nos indivíduos determinados conceitos necessários para a formação deste controle.

4. A legalidade nem mesmo é respeitada no âmbito do sistema penal formal. A legalidade não é respeitada nem mesmo em sua operacionalidade social, pois a estrutura de qualquer sistema penal faz com que não se possa respeita-la processualmente, uma vez que “o discurso jurídico-penal programa um numero enorme de hipóteses em que, segundo o “dever ser”, o sistema penal intervem represivamente de maneira natural”.(p.26)

Em contra partida órgãos prisionais possuem apenas a capacidade de operar de acordo com que o sistema penal determina, esta disparidade torna-se necessária, pois se não existisse produzir-se-ia indesejável efeito de se criminalizar varias vezes toda população.

“A realização de criminalização programada de acordo com o discurso jurídico-penal é um pressuposto tão absurdo quanto à acumulação de material bélico nuclear capaz de aniquilar várias vezes todas a vida do planeta. Estes dois paradoxos são reveladores de um sintoma da civilização industrial levado a seu absurdo máximo pela atual, ou nascente, civilização “tecnocientífica”.(p.26)
Nota-se que o sistema penal é mentiroso pors pretende utilizar de um poder que não possui, ocultando o poder que realmente exerce, a sociedade compra uma suposta segurança que o sistema penal vende. Frente a tais fatos, é notório que o sistema penal está montado de forma que a legalidade processual não seja eficaz, mas sim exerça um poder arbitrário e dirigido para setores vulneráveis da sociedade, isto é produto de um exercício de poder que se encontra nas mãos de todos os poderes que formam o Estado.

5. O exercício de poder abertamente ilícito por parte do sistema penal. Além de se violar a legalidade em prol da arbitrariedade penal e não se obedecer à estrutura do sistema penal no que diz respeito à legalidade penal e processual, verifica-se ainda que a operacionalidade social dos sistemas penais latino-americanos exercem um violento poder à margem de qualquer legalidade, a prova disto é o grande numero de torturas, homicídios, destratos, corrupção, trafico de drogas, etc, cometidos dentro de nossos órgãos prisionais, estes dados geralmente não são registrados nos informes dos organismos de direitos humanos, mesmo pertencendo a nossa realidade.

“Concluindo este capitulo Poe ser afirmar que:

a) a legalidade não proporciona legitimidade, por ficar pendente de um vazio que só a ficção pode preencher;
b) o principal e mais importante exercício de poder do sistema penal realiza dentro de um modelo de arbitrariedade concedida pela própria lei;
c) o exercício de poder menos importante do sistema penal serve de pretexto para o exercício de poder principal, não respeitando também, e nem podendo respeitar, a legalidade;
d) além de o exercício de poder do sistema penal não respeitar, nem poder respeitar a legalidade, na operacionalidade social de nossos sistemas penais, a legalidade é violada de forma aberta e extrema, pelo altíssimo numero de fatos violentos e de corrupção praticados pelos próprios órgaõs do sistema penal.”

III – A perversão imobiliza o discurso jurídico-penal.

A perversão do discurso jurídico-penal é a característica que cristaliza sua dinâmica discursiva, apesar da evidente falsidade, embora a principal atividade de poder do sistema penal não necessite da intervenção do órgão judicial, e para isso é preciso definir bem os defensores dos direitos humanos, os quais consideram verdadeira a afirmação de que a racionalização justificadora do discurso jurídico-penal acaba por excluí-los, mesmo que sem percebe-lo, deste sistema.

A crítica ao sistema penal é considerada uma ameaça aos direitos humanos no âmbito do órgão judicial, diante disto, é preferível ignora-la, atribui-la circunstâncias conjunturais, refugiando-se no contraditório argumento da “impotência – onipotência” que permite dar ao discurso jurídico-penal um valor simplesmente instrumental. A falsidade do discurso jurídico-penal faz com que se crie efeitos reais e por isso seja aceito pelos juristas, confirmando o teorema de Thomas: “se os indivíduos definem as situações como reais, são reais suas conseqüências”. Estes efeitos são reais com relação aos direitos humanos, por exemplo, como citamos anteriormente, sendo assim os órgãos judiciários são os que exercem menos poder dentro do sistema penal.

“Se um grupo de pessoas estivesse a ponde de nos matar e não tivéssemos a possibilidade alguma de defesa e, nesse exato momento, o grito de uma coruja lhes anunciasse a presença de uma “alma penada”, infundido-lhes tal temos que, imediatamente, nos liberassem, fugindo espavoridos, não há dúvida de que nos felicitaríamos infinitamente pena acidental presença da coruja. No entanto, isso não significa que começaríamos a acreditar que as corujas são “almas penadas”. O discurso jurídico-penal é tão perverso que, a partir da presença salvadora da coruja, faz com que os juristas relacionem seriamente as “almas penadas” com as corujas apaixonadas”.(p.30 e 31)

IV – Signos teóricos da situação crítica na América latina.

1.Crítica ao direito: Um dos exemplos mais expressivos deste sinal teórico vai em direção ao conceito básico do direito privado, ou seja, recusando que o direito seja entendido, unicamente como aquele que responde apenas a uma concepção “liberal-individualista”, e por isso recusa-se ao jurista a função de tutor do “direito natural”, o qual determina os conteúdos do direito, tarefa esta que deve ser reservada a política, deixando ao jurista apenas uma atividade interpretativa, porém não se deve cair em um positivismo ultrapassado, o qual cria uma onipotência legislativa, sendo que parte do legislados os limites impostos aos direitos humanos, deve-se comemorar a conquista de uma cultura independente do “direito natural”, independência esta que fundamenta a gestão histórica do jus-naturalismo como ideologia que aceitava e racionalizava a escravidão.

Esta crítica é irrefutável em seu aspecto central, no que se refere à negociação do direito como ideologia justificadora de um conceito quiritário de propriedade, mas não acreditamos que este sinal teórico consiga corrigir a situação crítica do discurso jurídico-penal e a deslegitimação do sistema penal com relação ao exercício do poder.

Apenas de se concordarmos de que existem dúvidas em relação ao caráter da “ciência” do direito, pelo fato de sabermos que a ciência foi, e é, manipulada ao longo da história para se conquistar o poder, fica ainda obscura a posição desta crítica com relação ao penalista, ao ser descoberta a falsidade do discurso jurídico-penal. Como pode limitar-se o jurista a uma função técnica se isso implica ao fortalecimento da lógica interna de um discurso que é utilizado para disseminar as penas perdidas.

“Se o discurso é perverso, se é baseado em falácias acerca da realidade operacional dos sistemas penais, se esta realidade é um verdadeiro genocídio em marcha e se o exercício de poder mais importante do sistema penal fica fora do campo abrangido pelo discurso jurídico-penal, o penalista que limita sua função à mera técnica não fará outra coisa senão aperfeiçoar um discurso que racionaliza a contribuição do órgão judiciário a semelhante empresa”.(p.33)

2. Preocupação com a legitimidade do poder. A questão da legitimidade do poder trata-se do tema central da filosofia do direito em nossa região marginal, tornando-se impossível aborda-lo em toda sua magnitude ou analisar suas contribuições.

“A título meramente exemplificado, devem ser mencionados os trabalhos de Hernandez Veja, que recusa terminantemente que a legalidade possa proporcionar legitimidade e conclui desqualificando qualquer pretensão de isolar o direito e o exercício do poder de um marco ético. Hernandez Veja demonstra que o poder apresenta-se não apenas como um fato social, mas também, como uma realidade moral(idealidade ético-racional), o que na verdade, não poderia ser diferente, uma vez que o poder se exerce mediante ações humanos, Nesta duplicidade, na permanente tensão entre real e ideal, que procura expressar mediante uma lógica dialética, está a raiz, para Hernandez Veja, do “enigma” do poder, sua “aforia”.(p. 33 e 34)

3. Preocupação jus-humanista com o sistema penal. Existem, na América Latina, grupos civis que preocupam-se com o sistema penal, muitos deles manifestam resistência contra o terrorismo de estado e, nos paises onde não existe um terrorismo atuante não se pode deixar de percebe-lo intacto nos órgãos que executam, com seu próprio poder administrativo de forma mais prudente ou dirigido para outros setores sociais. O espanto, ou busca de explicações conjunturais frente a falta de embasamento teórico, torna-se a primeira reação ingênua, a qual paulatinamente vai se tornando um forte interesse pelo sistema penal.

4. Critica criminológica. Os signos teóricos tiveram grande importância para a situação critica que se instaurou na América Latina, mas a sacudida teórica mais formidável resultou da difusão da criminologia da reação social na região, pondo fim a um lento processo de ingênua confiança, o qual alcançou sua expressão ideológica máxima no “Código Penal tipo latino-americano”, elaborado na década de 60, baseado em resultados técnicos operacionais de aperfeiçoamentos técnico-legislativo.

Com o aperfeiçoamento da criminologia da reação social na América Latina, manifestou-se a falsidade do discurso jurídico-penal, devido a maior violência operativa existente em nossa região. Por outro lado, neutralizou a ilusão do suposto defeito conjuntural, superável num nebuloso futuro.

“Somente o próprio exercício do poder pode tentar neutralizar a situação critica na América Latina, mas não pode faze-lo gerando um “saber” próprio por que, também neste caso, trata-se de um fenômeno derivado do poder planetário ou enxertado na sua rede em posição marginal. O saber das fábricas ideológicas centrais, ao transnacionalizar-se, torna-se disfuncional para o exercício do poder dos sistemas penais marginais, restando, como único caminho para que suas agencias escamoteiem seu poder, a desinformação teórica. Não é em vão, portanto, que órgãos dos sistemas penais latino-americano favoreçam a reiteração de discursos criminológicos administrativos, do discurso jurídico-penal mais tradicional e da estigmatização como “estrageirizantes” dos discursos centrais, em função de um chauvinismo “cientifico” que repete discursos seculares, etc.”(p. 35 e 36)

A critica social ao sistema penal dói denunciada como marxista, na América Latina, pois em nossa região periférica tudo que se relaciona a teoria deste pensador é avesso aos órgãos de controle social, porém em respeito a ideologia teórica de Marx, devemos levar em consideração tudo que já citamos até agora como a deslegitimidade teórica do sistema penal, juntamente com a falsidade do discurso jurídico-penal, atuando de maneira irreversível através da teoria da rotulação que responde ao internacionismo simbólico.

Mesmo com os esforços do sistema penal não foi possível evitar a situação critica vigente, pois como em um impulso ético, que o ser humano possui para transpor qualquer situação negativa, não foi possível conter a força de todo exercício genocida do poder.

V – A deslegitimação pelos próprios fatos

A deslegitimação pelos próprios fatos se resume em que o poder do Estado se mascara para não admitir que a realidade é que ele próprio se oculta e é omisso, quando deveria interagir e fazer valer o contrato social no qual a constituição é a lei máxima e ela própria não passa de uma folha de papel. Só mesmo um tratamento de choque onde a sociedade seria sacudida de surpresa e assim acordando para realidade seria capaz de mudar para uma nova ordem social.

O povo por excelência ainda se mantém nos antidos costumes de que “não é comigo”, mas tudo que se passa na sociedade são coisas que podem afetar nosso dia a dia, então coisa que não tem anda haver conosco podem nos trazer grandes surpresas.

O esforço da mídia é grande e faz com que a sociedade se iluda a ponto de pensar que nosso sistema penal é eficaz e que realmente proteja a sociedade, neste sentido tenta encobrir, mascarar a calamidade que realmente é.

Apesar de formidável, o esforço, que parece ter êxito nos paises centrais, em nossa área não consegue ocultar completamente a realidade operativa dos sistemas penais.

Diante dessa constatação, a qual se acrescenta o enorme volume de violência provocada pelos órgãos do sistema penal na forma de corrupção, degradação, morte violenta de seus próprios integrantes, privações de liberdade, extorções, etc, notamos que a justiça é também resultante da ineficiência do sistema penal.

a)admite-se implicamente que já não se pode afirmar que o monopólio da violência pertença ao Estado, sendo mais adequado afirmar que seus órgãos pretendem o monopólio do delito;
b)admite-se expressamente que a legalidade é uma ficção;
c)o sistema penal converte-se em uma espécie de “guerra suja” do momento da política, na qual o fim de justifica os meios;
d)em razão da seletividade letal do sistema penal e da consequente impunidade das pessoas que não lhe são vulneráveis, deve admitir-se que seu exercício de poder dirige-se à contenção de grupos bem determinados e não à “repressão do delito”.

VI – O Desprestigio dos Discursos Penais Latino-americanos em Razão de seus Vínculos Ideológicos Genocidas

1.O discurso jurídico-penal. Durante muitas décadas o discurso jurídico-penal foi positivista-periculosista, integrado com a criminologia positiva. Superando esta fase o discurso jurídico-penal passou a se assentar na base do neokantismo, na medida que lhes eram úteis. Nas ultimas duas décadas, com resistência e admitindo mais as consequências dogmáticas do que a base realista, este discurso sofreu uma relativa fragmentação com a introdução do finalismo.

2. Discurso criminológico. Em um marco jurídico mais amplo, o neokantismo foi mas utilizado na América Latina, para legitimar os regimes de fato inclusivo. Da mesma forma a América Latina conhece, há muito tempo, o fenômeno de constitucionalismo formal com ditadura real, cujas modalidades de terrorismo do Estado também apelam a ruptura provocada pelo neokantismo entra a realidade e normalidade. Torna-se óbvio a impossibilidade de setores populares e despossuídos de nossa região marginal depositarem algum nível de confiança num direito assim concebido de acordo com a antiga tradição consagrada no folclore de nosso povo.

“Enquanto isso, seu colega brasileiro afirmava na Bahia, de acordo com a linha da psiquiatria racista francesa de Montreal, que os mulatos era desequilibrados morais e que a responsabilidade penal deste grupo deveria ser diminuída ou excluída confirme os postuladores do discurso penal tradicional, o que, em outros termos, classificava a maior parte da população brasileira como em “estado perigoso”. No ultimo pós-guerra, uma discussão semelhante teve lugar na Bolívia, a respeito do índio, tentando-se igualmente considerar em “estado perigoso” a maioria dos segmentos populares”.(p. 42 e 43)

“O periculosismo criminologico recebeu um novo impulso com a chegada à América Latina e, especialmente, a Cuba – da criminologia soviética que. Ao menos em suas versões traduzidas, perfila-se nesta corrente, coincidindo com a longa tradição peroculosista do pensamento penal Cubano”.(p. 43)

“Tendo sido primeiramente racista(o discurso sob medida das minorias proconsulares das repúblicas oligárquicas, que entram em crise a partir da Revolução Mexicana), a criminologia etiológica latino-americana, sem deixar positivista, converteu-se logo no complemento ideal de direito penal mais ou menos neokantiano. Enquanto o direito penal ocupava-se da “Etiologia” das ações das pessoas selecionadas pelo poder do sistema penal; no entanto, nem o direito penal, nem a criminologia ocupavam-se da realidade operacional dos sistema penal, cuja legitimidade não era questionada. O discurso jurídico-penal neokantiano não corria risco algum, e até saía fortalecido com o aparente escoramento dos dados de uma “ciência natural”.(p. 43 e 44)


BIBLIOGRAFIA

ZAFFARONI, Eugenio Raul, 1927 – Em busca das penas perdidas: a parda da
legitimidade do sistema penal/Eugenio Raul Zaffaroni: tradução Vânia Romano
Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro, Revan, 1992. 4ed.

SILVA, Luciano Nascimento. Manifesto Abolicionista Penal(ensaio acerca da perda de
legitimidade do sistema de justiça criminal).
Disponível na internet: http://www.mundojuridico.adv.br/

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